Morar ou ter uma experiência no exterior tem prós e contras, além de muitos desafios. Quer saber como tudo começou para mim na área de consultoria para Bares e Restaurantes?
De um lado é a possibilidade de conhecer novos lugares, novas culturas e novas pessoas. De outro, a falta do aconchego da família, a saudade dos amigos e a coragem de ter deixado para trás tudo o que já se conquistou.
Mas a verdadeira experiência que quase ninguém conta é poder se descobrir e conectar-se a si mesmo. E para isso, existem muitos desafios e aprendizados pelo caminho até chegar à verdadeira paixão. A minha paixão? Gestão de Restaurantes.
Quer saber como tudo aconteceu comigo?
Como tudo começou
Eu sempre sonhei em ter uma experiência internacional, mas achava que era apenas um sonho. Tive um convite para ir para os Estados Unidos ainda quando jogava vôlei. Mas acredito que tudo acontece quando tem que ser e para onde tem que ser. E aquele não era ainda o meu momento.
Estados Unidos não me encantava e, além disso, na época era quase impossível bancar o investimento de ir mesmo tendo casa, bolsa de estudos integral em uma Universidade e todo o material pago.
Anos depois a hora certa chegou. Estava no doutorado, em outro momento de vida, com outros projetos e já havia até pensado que o sonho jamais iria se concretizar. Foi quando, em uma orientação de tese, meu professor me disse: e se você finalizasse sua tese no exterior, para onde você gostaria de ir?
Acabei me mudando para Paris por um ano. Preparação árdua: 7 meses de francês superintensivo, imersão em cultura francesa e criação de regras básicas para integração a todas as novidades que estariam por vir.
O sonho enfim estava se realizando, no momento e lugar perfeitos. E o que eu nunca imaginei é que isso seria apenas o início.
Meu objetivo era um só: conseguir me integrar, me adaptar bem e achar meu futuro profissional. E para isso, vários desafios foram superados. O primeiro de todos? Era desafiar a mim mesma.
Eu havia me tornado professora, mas mesmo tendo paixão pelo que fazia, não me sentia realizada e acreditava que poderia fazer mais aproveitando minha trajetória. De jogadora, depois funcionária públicas à professora, me faltava algo. E esse algo era o desafio.
Apesar da capital francesa ter o estereótipo de cidade com pessoas fechadas, fui super bem acolhida. Acredito que minha imersão na cultura local e disposição à me integrar me ajudaram muito. Em uma semana já estava participando de recepções “à la française” na casa de vizinhos, discutindo conteúdos de gestão com colegas parisienses nos intervalos e começando a me enturmar em um grupo de amigos franceses. E foi a partir desse grupo de amigos que descobri o que viria a ser minha paixão: restaurantes.
Mudança de trajeto
Que a gastronomia francesa é a melhor do mundo todos sabemos. Mas o que jamais iria imaginar é que na minha mudança de universo profissional seria justo para o setor de bares e restaurantes.
Sendo adepta de uma “boa” comida congelada, da praticidade e da filosofia de “quanto mais longe do fogão melhor”, esse foi o segundo desafio: descobrir novos gostos, novas atividades e novas possibilidades. E apesar de tudo, não foi a gastronomia francesa que me conquistou. Foi a profissionalização do setor e saber o quanto isso faz girar a economia por lá.
No começo, fazia cursos de culinária. Participava de cursos gratuitos em feiras locais. Sempre que podia, estava eu lá em uma feira a cada semana em um local diferente, com franceses querendo se virar na cozinha ou atrás de novos ingredientes e sabores.
Depois, foi o momento de me aperfeiçoar e começar a estudar mais a fundo o setor. Foi então que converti o objeto de estudo de minha tese e me vi fazendo estágios e trabalhando em grandes restaurantes para entender melhor da dinâmica das atividades e das particularidades do setor. Afinal, aprender na prática é sempre melhor.
Comecei fazendo estágio com o Chef na cozinha do Crous (restaurante universitário). Para quem nunca havia se imaginado dentro de uma cozinha, eu ali estava acompanhando o Chef em toda sua rotina: conferência de entrega de fornecedores, preparação de cardápio, cálculos de previsão de demanda, lista de compras, organização da equipe, e por aí vai.
Não foi ali que aprendi a cozinhar, afinal não era meu objetivo, mas foi onde pude começar a vivenciar toda a rotina no setor. E que rotina: começava 6 horas da manhã!
Depois, foi quando tive minha segunda oportunidade: participar de uma missão de três dias para um grupo de empresários da Shell em três lugares incríveis: um hotel 5 estrelas no 14ème arrondissement de Paris, em jantar privativo no famoso Bateaux Mouches e no primeiro evento fechado do Museu do Louvre. Para quem ache glamouroso esse último, basta lembrar a família de ratazanas passeando tranquilamente à noite pelos corredores. Puro luxo!
Mas aí foi onde consegui visualizar um pouco sobre hospitalidade e as facetas da perfeição na arte de receber bem as pessoas. Apesar de já ter trabalhado diretamente com clientes e turistas no Brasil, o rigor por lá impera. O que se deve oferecer não é apenas um sorriso, uma informação, acolher bem e de forma espontânea: a pessoa deve perceber que aquele momento e ela para aquele lugar são especiais. É a arte de oferecer a melhor experiência para o cliente.
Foi aí que bateu um estalo para o fato que eu deveria acompanhar mais de perto a realidade da hospitalidade e da gestão em grandes e conceituados estabelecimentos, afinal eu estava em Paris! Comecei a estudar toda a rotina acompanhando o trabalho de um dos gigantes da capital francesa com 140 funcionários.
Mas como não era suficiente, e desafio é meu sobrenome, eu queria conhecer a realidade dos restaurantes e dos gestores desse setor em outras culturas. Afinal, comparar Brasil e França nesta área seria tarefa “fácil”, mas e outra cultura totalmente diferente?
Foi aí que fui para o Marrocos.
Experiência no Marrocos
Da culinária diferente, jeito de comer particularmente exótico para nosso dia-a-dia, ao relacionamento entre pessoas: tudo era algo que nunca imaginei que iria vivenciar. Frequentei e estudei alguns restaurantes, conversei com gestores, observei costumes. Mas haviam fatos que eu jamais esqueceria.
Sociedade tradicionalmente machista, mulher na rua sem véu e sozinha se torna motivo de muitos olhares. A primeira recomendação que tive foi: evite pegar ônibus sozinha e táxi será pior ainda. Então como eu iria fazer para ir até um dos principais restaurantes que iria estudar? Enfrentando quase 8km à pé! Não vamos discutir ou se atrever a enfrentar o que locais disseram para evitar.
Mas isso foi apenas o começo. Dentre as coisas mais diferentes que vi e vivi por lá, posso citar três. E foram coisas que jamais imaginei que pudessem acontecer.
Quando estudamos sobre a rivalidade entre os concorrentes, no Brasil vemos algo como ficar de olho de longe, etc. Se um copia o outro, há reclamações, mas sabemos que é normal. Mas no Marrocos… a concorrência é vista com outros olhos. Foi ali que vi uma briga por competitividade de fato!
Em um restaurante tradicional marroquino, localizado no centro da cidade, em região turística, uma placa de promoção foi o motivo do início de uma algazarra: no começo dois gerentes começaram a discutir. Depois, chegou um terceiro. Todos de restaurantes diferentes, porém vizinhos. Três homens discutindo na rua, cada um na frente ou na sacada de seu restaurante, defendendo seu ponto de vista. E essa foi a lógica que dei para tal situação, afinal começaram a discutir em francês, mas logo partiram para o árabe. Foi reflexo de minha presença no camarote daquela cena? Pode ser. Mas eu estava ali “registrando” tudo.
O segundo momento foi quando fui realizar compras com o Chef de um dos restaurantes que eu estava estudando. Inusitado? Talvez. Mas a cena de me deparar em uma ruela com feirantes por todos os lados, sentados no chão comercializando seus legumes, frutas e verduras ali mesmo em tecidos no chão, para mim foi algo novo.
E, o terceiro episódio e um dos mais marcantes foi a entrevista pela parede. Sim, pela parede. Em um dos restaurantes que aceitaram participar do meu estudo, o proprietário aceitou realizar a entrevista. No entanto com uma condição.
Não vi problemas, embora não me ative a esse detalhe de “uma condição”. E fui até o local. Chegando lá, me apresentei e logo em seguida, fui convidada a aguardar alguns instantes. Achando que estava esperando o proprietário, vi entrando um homem que logo foi se apresentando: “sou funcionário da loja ao lado e sou eu quem vou te acompanhar na entrevista”. Subimos as escadas do estabelecimento, sentei em uma mesa, na frente dele, e comecei a questionar o que estava acontecendo. Ele me disse “só um minuto que o Sr. Mohamed já vem”.
De cara pensei: ele não fala francês e por isso precisará de um interprete. Mas a questão não era essa. Ouvi uns passos subindo as escadas. O senhor havia chegado. Mas se instalou do outro lado da parede. Por uma grande abertura estilo de uma porta ao lado que foi utilizada para a comunicação.
Ele falava francês, mas o esquema era: ele falava para o funcionário da loja (que não tinha nada a ver com a história) e o rapaz falava para mim. Eu falava para o rapaz e ele repassava ao proprietário. Acabei entendendo: o fato de estar em uma situação dessas com uma estrangeira o incomodava. Embora as questões culturais, achei muito legal de sua parte dar o seu “jeitinho” para atender o meu pedido.
Experiência na Bélgica
A terceira experiência profissional foi na Bélgica. Um ano depois, acabei indo realizar um pós-doutorado, mas não menos ligada à área da gastronomia.
Como o foco das minhas pesquisas mudaram de certa forma, não estava mais tão ligada apenas à gestão neste momento. Estava focada nos acontecimentos no atendimento e no ambiente do salão: precisava entender a percepção da inovação no setor. O grande desafio aqui não foi ter apenas uma realidade diferente do Brasil em relação à serviços e inovação neste setor. Mas foram hábitos que presenciei por lá e o comportamento de consumo que muda.
Das comidas gastronômicas ou saudáveis da França aos pratos regionais marroquinos, passei a ver batatas-fritas por tudo. Para explicar, a batata-frita está para os belgas assim como o arroz e o feijão estão para os brasileiros. É quase isso. E, diga-se de passagem, a melhor batata-frita do mundo estava por lá também.
Acabei aprendendo que cervejas boas são aquelas tomadas em temperatura ambiente (ao menos na cultura de lá, afinal na maior parte do ano pra que geladeira se já estamos em uma, não é mesmo?). Cerveja de framboesa, aromatizada com mel, branca, e por aí vai. Uma para cada dia do ano. E outra grande mudança: do vinho à cerveja. E excelentes cervejas.
Aprendi a prestar mais atenção ao que influenciava o comportamento das pessoas mais do que nos processos e na gestão de fato. Afinal, um está ligado ao outro neste meio. Aprendi a ver os detalhes nos ambientes. Aprendi a buscar respostas para quase tudo que poderia ser inovador. Confesso que tentei achar resposta até para pães entregues a céu aberto e deixados no chão na porta de alguns restaurantes mesmo antes abrir. E, talvez pelo hábito de tentar achar resposta em tudo, voltei às origens: a sala de aula.
Aqui fazendo um parêntese, já que sei que pode ser a curiosidade de muitos que vão ler: mas há realmente diferença do ensino no Brasil e no exterior? E a resposta é sim!
Há diferenças na grade, nas propostas de cursos, em algumas visões acadêmicas, na pesquisa. O que não muda em nenhum lugar e isso posso dizer com conhecimento de causa: os alunos.
Dando aula para uma turma de mestrado em psicologia econômica o fato que mais me marcou não foram os alunos prestando mais atenção que os normalmente os brasileiros, trazendo mais questionamentos e demonstrando mais interesse. O interessante foi saber que o jeitinho brasileiro também estava por lá. Sabe onde? Na forma de se realizar trabalhos.
Certa vez, a turma tinha um trabalho para fazer. Trabalho individual, nada complexo, mas trabalho. São tecnológicos para isso? Claro! Como em qualquer outro lugar. Coisa de pegar um trabalho como referência e fazer outro em cima, pegar o do colega para “dar uma olhada” e por aí vai. Funciona por lá? Com os outros professores não sei, mas comigo não funciona. Por quê? Sou mágica? Alguma vidente? Logico que não! Só não funciona adicionar a professora no mesmo grupo de Whatsapp.
Les allers-retours
Depois de toda essas situações e minha adaptação por lá, concordo com a crença que sempre quando viajamos deixamos uma parte de nós. E esse é o maior de todos os desafios.
Criei oportunidades e o hábito de voltar sempre que podia para procurar essa parte de mim que havia descoberto e que havia deixado por lá. E, para viver novos desafios também.
Hoje me dividido em uma jornada entre Brasil e França, fazendo consultorias para restaurantes, num leva e traz de experiências culturais que todos que viajam adquirem, e, aplicando todo o aprendizado profissional que pude ter.
Texto escrito por Juliana Cândido Custodio para o Blog do Centro Europeu