Qual é a relação entre hamburguer e Covid-19? Entenda a estratégia na construção do discurso

by Juliana Cândido Custodio

Hamburguer e Covid-19 não tem nada haver, não é mesmo? Mas, pode ser que tenha. E quero que você me ajude a entender a estratégia na construção do discurso. Porque estratégia descomplicada também é comunicação. E hoje aqui no Blog vamos falar disso 😉

No marketing temos muitas áreas do conhecimento que precisamos nos embasar para conseguir criar um posicionamento consistente de marca. É como criar o melhor “pacote de características” para um produto ou serviço, qual é o melhor posicionamento de preço para passar a percepção de qualidade adequada e atrair o público ideal, mas também pra vender e ser lucrativo para a empresa, é como ter o melhor ambiente de vendas e, por fim, como comunicar tudo isso.

Infelizmente, em nossa profissão, pela utilização do termo marketing de uma forma muito banalizada dando enfoque apenas na comunicação e muitas vezes apenas nisso, acaba-se deixando para trás o essencial: que toda boa comunicação é embasada em um argumento construído pelo marketing para fazer as pessoas acreditarem na verdade que a empresa quer passar. E isso acontece em todo lugar, a todo momento e inclusive com o que todos nós estamos vivenciando com a pandemia da COVID-19.

 

Mas o que está acontecendo?

Vamos retratar em uma empresa:

Uma lanchonete quer se destacar no mercado, ter diferencial frente aos concorrentes e tornar-se mais lucrativa para isso.

Aí seus gestores partem do seguinte raciocínio:

 

  • vou fazer um hambúrguer de um pão que ninguém faz (diferenciação)
  • vou fazer minha própria carne (mas um ponto para se diferenciar)
  • vou construir um ambiente de vendas bem legal para o meu público
  • já que estou fazendo tudo, cabe cobrar minoico a mais, afinal sou diferente.

 

Se é bom ou ruim, aí tudo depende da qualidade do pão, da qualidade da carne, da estrutura que se criou no ambiente (incluindo aqui localização, limpeza e atendimento, por exemplo). Preço, nem sempre tem que ser barato par ser bom para o cliente. Um posicionamento de preço mais caro, dependendo da estratégia da empresa e de seu público, pode ser melhor ainda, pois seleciona o público e faz as pessoas associaram a uma proposta de valor superior (caso tudo isso que foi feito se comprove, claro).

O gosto pode ser o mesmo que vários outros, o ambiente nem muda tanto, apesar de ser arrumadinho. Mas o grande diferencial ficará com quem? Com o discurso que vende.

Aí vem a comunicação e diz: “vou divulgar tudo isso”. Como? Dizendo “Tenho o melhor hambúrguer, feito com o melhor e único pão com ingredientes XYZ, num ambiente super aconchegante que você deve conferir e não pode ficar de fora, afinal todo mundo vem aqui”.

Bom discurso? Na minha opinião, enquanto discurso sim. Fala os diferenciais (mesmo que não sejam essencialmente diferenciais, faz com que os destaques sejam percebidos), prova o porque são diferentes (traz o argumento do pão, por exemplo e do ambiente), e aí vem com o argumento mais forte para o ser humano: todos estão fazendo, por que você não?

Lembra da tesourinha da Minnie e do Mickey? Vale conferir aqui nesse vídeo:

 

 

Tá certo que isso foi tema de muita polêmica na época e continua sendo até hoje, afinal, era um anúncio para crianças e usando um argumento persuasivo para lá de questionável. Mas o que quero retratar aqui é o discurso. Discurso vende. Vende porque convence pessoas a terem uma percepção de uma dada realidade. E essa é a função do marketing: fazer que tudo seja construído para gerar a percepção que a empresa quer que o consumidor tenha.

 

Onde está o problema?

O grande problema é quando há desalinhamento. O alinhamento de estratégias é fazer com que tudo que uma empresa faça ou transmita tenha uma coerência e consistência para que, quando chegue na cabeça do consumidor a informação, ele perceba aquilo, porque aprendeu que aquela informação pode ser boa ou ruim. Mas, ele vai querer comprovar. Como? Indo até a famosa lanchonete e vendo (e provando) se tudo aquilo é verdade.

Aí temos outros processos de dissonância e outros fatores que podem influenciar essa percepção para fazer um reforço positivo ou negativo, mas deixamos isso para outro artigo.

A grande questão é que veículos de comunicação também estão usando dessa forma de comunicação parcial para “vender” informação para a população.

 

Vamos aos dados:

 

  • Cerca de 15,3% da população brasileira tem ensino superior segundo dados do IBGE 
  • Dessa parcela, confesso que não tenho como afirmar, mas como professora digo que a maior parte não tem conhecimentos básicos em estatística (seja pela área de formação, pela bagagem ou interesse mesmo)

 

Outra informação importante:

  • A maior parte da informação que recebemos não é processada por diversos fatores, o que faz que a tendência do ser humano é captar apenas a informação que é relevante para ele naquele dado momento.

 

Agora vamos aos fatos.

Hoje pela manhã me deparei fazendo o que não faço há muito tempo: dar uma passeada nas redes sociais. Foi quando me deparei com a postagem de meu professor de matemática do ensino médio, não vale tentar lembrar ou fazer contas de quanto tempo atrás, muito querido e que me ensinou muito, falando sobre uma reportagem que vou em um jornal que mencionarei adiante. O argumento dele foi simples, sem ter tendenciosidade política nem nada (assim espero eu). Ele afirmava que a forma de se comparar grandezas numéricas na mesma proporção eram boas e importantes por tentar estatisticamente (mesmo que superficial) comparar situações e que notícias apuradas dessa forma estão de parabéns. E super concordo com ele!

 

Veja a reportagem:

 

 

Aqui não quero julgar o que está certo ou errado em termos de medidas de saúde pública ou de política, ok? Por favor. Vamos abordar apenas três questões: lógica matemática/estatística, lógica argumentativa e lógica de vendas (não cabe ao jornal mas cabe para amarrar com a minha ideia inicial sobre marketing 😉

Números absolutos ou lógica matemática trata-se do levantamento de dados numéricos de um determinado caso. Aqui o fato é a contagem total de casos, seja número de contaminados ou número de óbitos infelizmente 🙁

Estatística prevê a relação entre fatores, trabalhando com probabilidades, fazendo relações entre os números para tentar dar sentido aos dados. Ou seja, a estatística  vai utilizar número e dados numéricos para tentar fazer associações entre eles e extrair um sentido para aquilo.

Até aqui chegamos. Então, quando vemos os casos totais de Covid vemos os números. Quando vemos os casos por milhão vemos estatística. A conclusão é: “nossa, então nem há tantos casos no Brasil como é retratado, pois a população é muito grande em comparação com outros países”. Como diria na gíria jovem popular “tamo de boa”.

No entanto, a boa estatística não considera e nem pode considerar uma relação como se fosse algo aleatório e isolado. Tem variáveis (outros números) que ajudam na criação de relações. Por exemplo: quando comparamos casos por milhão de habitantes, vemos que o Brasil está em 32º e em casos absolutos em 2º (hoje 13/06/2020). Mas… se considerarmos a densidade populacional do Brasil em comparação com China, Estados Unidos e França, a realidade é outra.

Densidade populacional é o número de habitantes que temos por quilômetro quadrado. Sabemos que há muitas regiões do Brasil como Centro-Oeste e Norte do país, com regiões quase que desabitadas e outras, como favelas no Rio de Janeiro e em São Paulo que superam muito a média nacional. Mas nossa média é de 23 habitantes por quilômetro quadrado (hab/km2), segundo IBGE de 2010. Mas chega em algumas regiões a muito menos e e em outras muitas vezes mais. E essa é apenas outra forma de vermos esses dados apresentados de forma totalmente tendenciosa.

Por isso, se vê tantas informações que parecem contraditórias ou diferentes e pessoas defendem uma ou outra, enquanto na verdade, não há defesa, há uma percepção (que pode ser parcial) da realidade. Tudo é uma questão de como está construída a argumentaçãoVeja outro exemplo.

Nesta notícia, querendo ou não, gostando ou não, as estatísticas estão ok, considerando casos por milhão, de forma singela e de certa forma ilusórias, independente de haver uma subnotificação de casos etc, assim como os dados numéricos  « absolutos » vamos dizer assim. Simplesmente pois o “empacotamento da notícia”, assim como o “pacote do hambúrguer” ficou mais adequado ao momento desta forma.

Por que o pacote é feito dessa forma? Porque as pessoas precisam de calma e conforto para receber a notícia afinal só notícia ruim não vende. As pessoas precisam do hambúrguer com o melhor pão e carne própria, mesmo sendo o pão da padaria e a carne com o mesmo gosto da que você pode fazer em casa às vezes. E a questão não são números ou estatísticas. Isso é o produto. É o que se precisa vender. Onde se veicula também é importante, afinal quanto maior a credibilidade e reputação positiva do veículo ou mídia, melhor é. Onde se vende o hambúrguer também é importante pois passa que é de mais ou de menos qualidade que outras.

Mas, a questão é a construção da narrativa: como a história é contada. Ou seja, como seu produto é comunicado. Nessa notícia acima, está tudo certo com os número, mesmo que se você não concorde em trabalhar com números por milhão ou mesmo que você não concorde em se apresentar números brutos (absolutos).

Como é articulado o discurso é que muda de figura. É tentar falar que está tudo bem onde não está.

 

Vamos à construção do argumento

No caso da lanchonete: 

  • Argumento 1: Nós temos o melhor hambúrguer 3 somos diferentes
  • Argumento 2: temos um ambiente legal para você
  • Argumento 3: Você PRE-CI-SA conhecer porque afinal todo mundo conhece.

 

Como foi feito esse argumento:

  • Argumento 1: o que te oferecemos bonitinho (nosso produto)
  • Argumento 2: reforço melhorado do argumento 1, com adicionais para te convencer que 1 é bom ou que não é bom (depende do contexto)
  • Argumento 3: conclusão e fechamento: ápice para te fazer concordar ou discordar com algo.

 

Agora vamos rebater isso nesse argumento da notícia (e aqui lembro muito da minha professora de semiótica da época de faculdade e amiga, que nos fazia comparar a mesma noticia a partir de jornais diferentes, e da amiga querida e professora de língua portuguesa, que me lembro com saudades):

  • Argumento 1: números absolutos – são chocantes, e verdadeiros
  • Argumento 2: números estáticos – cálculo por milhão – são verdadeiros também, mas relativos pelos motivos que já mencionei e muito leviano não considerar a extensão do território, densidade populacional e diferença entre regiões…
  • Argumento 3: números absolutos (sem explicar se há proporção ou comparação) e que reforça ainda mais o argumento 2.

Problema do argumento 3: quando se compara a taxa de recuperação do Brasil ao final de um discurso, tendo acabado de falar e frisar em estatísticas por milhão e voltar a falar em número absolutos… confesso que na minha opinião torna-se super tendencioso, principalmente para quem entende pouco do assunto (como mencionei no início do texto) ou não viu diferença no contexto.

A crítica não são os números. A crítica não é a « estatística » usada. A crítica é na construção do argumento. E isso muda tudo. Veja o que eles nos contam:

  • tá ruim,
  • mas por esse lado está melhor e
  • enfim, estamos até bem em comparação com os outros.
A grande questão é: temos boa parcela da população que “compra” esse argumento exatamente da forma que está sendo vendido. E vê a parte da realidade e interpreta como é melhor e mais conveniente para ela mesma.
Felizmente o professor de matemática e estatística que comentei também viu a falha disso. Grande falha. Por quê? Eu entendo pouco de estatística. Entendo pouco de construção do discurso. Entendo pouco de como as coisas acontecem de fato. Mas entendo de estratégia. E a questão aqui não é o quanto entende-se de algo, mas o quanto ter discernimento no argumento que compramos é que o importante.

E digo que sei pouco, mesmo trabalhando com isso há muitos anos. As coisas são delicadas. E tudo é ponto de vista. Tudo é percepção. E essa percepção depende de muitos fatores que, o que já sabemos, valores em que nos apoiamos, o que já vimos ou lemos. E, eu como profissional de marketing, profissionais de comunicação e estudantes dessa área,  sabemos como funciona o processo de construção. Não estou falando que foi errado. Conheço pessoalmente a jornalista, que faz um excelente trabalho e admiro mesmo! E que a articulação da notícia algumas vezes pode não ter sido feita pelo jornalista responsável. Pode ter passado batido, mas gerou um resultado que pode ter muito impacto negativo.

Neste momento, não temos que comprar o hambúrguer ou brigar que ele é bom. Não temos que desprezar e nem amar. Temos que tentar provar o que é, entender como é feito, para depois tirar conclusões e depois dar opiniões. Não são números aqui. Não são hambúrgueres também.

São muito mais! São vidas!

Só gostaria que as pessoas se informassem bem e se calcem de toda informação e conhecimento possível antes de tomar qualquer partido. Ou de não tomar também.

Temos visto muitas empresas afundarem com a crise da pandemia. Não é pela crise somente. Não é só pelo contexto. É pelo desalinhamento. As pessoas estão mais atentas e veem quem promete e cumpre o que diz e quem só fala. Por isso, empresas empáticas estão se destacando cada vez mais e empresas que com simples declarações estão perdendo clientes até por boicotes.

 

Estratégia é assim. É analisar dados. É saber o que fazer com eles. E o principal: é saber como usá-los.

Lembra da lanchonete do início do artigo. É a mesma questão. Tem consumidor que vai comprar o que a comunicação transmitiu para ele e achar que tudo é realmente diferente e maravilhoso. Outros vão achar caro, pois criaram uma expectativa que foi maior do que a empresa pode atender. Outros vão achar que não tem nada de diferente, o que nem é tudo aquilo, pois já experimentaram hambúrguer melhor.

Marketing e comunicação são assim. É criar o “pacote ideal” para um produto ou um serviço e vendê-lo como o consumidor espera comprar. E digo: espera comprar, pois as expectativas são criadas pela própria comunicação da empresa ou dos concorrentes.

Às vezes, quando você compra errado ou gosta parcialmente, você não quer assumir para os outros e para si mesmo a compra “errada” que fez. E te entendo e todos passamos por isso já na vida. Sabe aqueles R$ 100,00 gastos num jantar que nem foi tão top assim, mas foi num lugar badalado e você continua falando dele? Pois é. E infelizmente isso também acontece em esferas mais delicadas como notícias importantes.

Atenção com o que você recebe de informação. Atenção com o que você repassa e como você repassa. Atenção até com o que você acha certo e acredita. Cada um tem uma percepção da realidade. A realidade pode não ser tão cor-de-rosa mesmo sendo contatada e defendida do nosso lado. Tudo depende da lógica que estamos observando e das informações que se tem a respeito. E aqui não falamos de vendas. Aqui falamos de vidas!!!

E acima de qualquer construção de discurso, acima de qualquer estatística, são vidas que contam.

https://www.facebook.com/146659712053598/posts/3363893000330237/?vh=e

Se chegou até aqui, leu e gostou, mesmo que não concorde totalmente, ajude dando um like e compartilhando. Meu objetivo  não apenas expor meu ponto de vista. É maior que isso e mais importante nesse momento para mim: é fazer as pessoas acreditarem menos em discursos de WhatsApp ou notícias parciais da TV e mais em informações reais para depois chegarem as suas conclusões  😉

 

Abraços e até a próxima!

 

 

Deixar um comentário

Você pode também gostar disso

Este site utiliza cookies para melhorar sua experiência de navegação. Tudo bem para você? Ok! Estou de acordo. Ler mais

Privacy & Cookies Policy